Ganhador do Oscar 2021, “Meu Pai” estrela Anthony Hopkins e Olivia Colman em uma experiência cinematográfica de um pai e sua filha, dentro do conflito interno de Anthony, lutando inconscientemente contra sua demência, perda de memória, confusão mental, rompantes e relações familiares. “Meu Pai” é baseado em uma peça teatral escrita por Florian Zeller, que também é o diretor do filme. O artigo abaixo procura explicar a cronologia do filme e o desenvolvimento da doença do personagem, portanto contem spoilers.
Trailer:
O filme não segue uma linearidade objetiva, é um constante vai e vem, passado, presente e futuro, tudo misturado e confuso, para ilustrar a confusão mental de Anthony, seguindo uma linha temporal emaranhada, se esticando em situações e encurtando em outros momentos. “Meu Pai” se inicia com Anne, sua filha, chegando em casa, com seu pai ouvindo música clássica no meio da tarde em um quarto ou sala muito semelhante com o quarto no hospital, que aparece no final do filme. A conversa é sobre uma briga entre Anthony e sua nova cuidadora, da qual ele nem se recorda. Contudo a confusão mental é tanta que, mesmo sem se recordar de quem é a cuidadora, ele diz que ela roubou seu relógio, sendo que ele mesmo o havia guardado e esquecera o esconderijo. É importante dizer que Anthony é nascido em 1937, portanto se a história se passa no mesmo ano de seu lançamento, o personagem tem 84 anos.
Como espectadores somos convidados a sofrer de demência junto ao personagem, nos lembrando que, para o demente, não há repetição, tudo é a primeira vez. Todas as cenas nas quais Anthony está presente não podem ser compreendidas objetivamente, porque também são influenciadas pela sua doença. Contudo, as cenas nas quais ele não está presente, como as conversas de Anne com Paul, mostram uma realidade à qual Anthony está alheio. Além disso, o relógio de Anthony, frequentemente perdido e procurado novamente, é um símbolo da sua falha percepção do tempo, assim como seu afã para recupera-lo.
Rostos familiares
Poucos momentos depois da saída de Anne, Anthony arruma as compras quando ouve um bater de porta e, na sala, vê Paul (marido de Anne), mas com o rosto de Bill, seu médico na casa de repouso. Acredito que aqui fique claro já haver acontecido a mudança definitiva para a casa de repouso e que esta cena simboliza apenas uma lembrança de Anthony de quando encontrou Paul na sua sala mas, como não se lembrava de seu rosto, sua mente imaginou que seu rosto seria o de seu médico. É importante citar que Paul, quando questionado, diz estar casado com Anne há dez anos, ou seja, é possível que parte desta conversa tenha acontecido em uma das visitas nos fins-de-semana de Anne e Paul. Provavelmente, então, a situação tenha ficado insustentável, com muitas cuidadoras rejeitadas por Anthony e sua demência progredindo, sendo necessária uma mudança mais prolongada de Anthony para o apartamento de Anne e Paul.
Ainda esta cena entre Paul (com rosto de Bill) e Anthony, é misturada com uma vivência no presente, dentro da casa de repouso. Bill é confundido por Paul e o apartamento é confundido com a casa de repouso. Sabendo da confusão mental de Anthony, o médico decide manter os nomes e liga para Anne, insistindo que chegue logo, quando verdadeiramente estava chamando a enfermeira. A cena muda rapidamente e volta à lembrança da conversa entre Anthony e Paul, quando este volta da cozinha para a sala com um vinho. Paul costuma beber vinho ao falar com Anthony. Seu semblante inclusive se modifica, antes um rosto compreensivo e gentil, para um rosto impaciente e incomodado. Quando Anne chega, ele a vê com o rosto da enfermeira.
A conversa se estende quando Anne tenta consola-lo, e temos um retrocesso temporal de vários anos, antes de Anne conhecer Paul, contudo cinco anos depois de se divorciar de James. Mais adiante, Anthony vai para seu quarto, momento no qual voltamos para o presente e a enfermeira pega sua medicação do período noturno e questiona se esse era seu apartamento, mas não ouve resposta, para logo se esquecer da pergunta e responder com um simples “Obrigado”.
Laura, a nova cuidadora, chega, Anne a apresenta para Anthony e ele logo questiona se não a conhecia de algum lugar. Se inicia uma conversa sobre a outra filha de Anthony, uma pintora chamada Lucy. Anne rapidamente muda seu semblante, agora desconfortável, irritado e triste. Falar sobre Lucy é extremamente desagradável porque ela faleceu vários anos antes, contudo Anthony perdeu a lembrança do acontecimento.
Anthony também confunde muito os espaços, deixando quem assiste o filme igualmente confuso entre o que parece real ou não, isso fica evidente na semelhança estrutural do seu apartamento, o apartamento de sua filha e a casa de repouso. Aqui podemos pensar em duas possibilidades de realidade. A primeira é de que Anthony tinha um outro apartamento no qual morava sozinho, mas cujas memórias se emaranharam com o apartamento de Anne, fazendo com que ambos ficassem estruturalmente semelhantes. A segunda é que nunca vimos o apartamento de Anthony, porque o que ele acreditava ser o “seu apartamento” era, na verdade, o apartamento de Anne, quando Anthony estava sozinho em casa.
A Demência
Perto da metade do filme, voltamos para o momento em que Anne chega em casa com o frango, contudo, dessa vez, os rostos são os devidos. Anne diz se sentir mal que o pai não a reconheceu. Paul, antes impaciente, agora longe de Anthony, se torna apoiador de Anne e demonstra compaixão. Anthony volta rapidamente para a cozinha, já tendo esquecido de que conhecera Paul a pouco, perguntando novamente quem ele era e, num ato agressivo, perguntando se o relógio no pulso de Paul era o seu.
Cronologicamente junto à conversa inicial do filme, Anthony e Anne participam de uma consulta com a Doutora Sarai, Neurologista, momento no qual ele se mostra viver em uma organização mental própria, dizendo que a filha tenta roubar seu apartamento, ficar com os bens e se mudar para Paris, sendo rapidamente questionado por ela, a qual nega a intenção.
Durante o filme não é diagnosticada nenhuma demência específica, contudo fica claro se tornar de uma perda cognitiva grave, devido, provavelmente, ao envelhecimento. Anthony apresenta vários sintomas característicos da demência, como lapsos de memória, se recordando e esquecendo rapidamente de situações e pessoas, ou ainda associando pessoas desconhecidas com rostos familiares. Essa confusão mental também pode trazer sensações e sentimentos ambíguos, sendo expressados por violência e, nos momentos de volta à normalidade, também atos inexplicáveis de gentileza.
Outros sintomas, como a perda da habilidades, perceptível na dificuldade de Anthony para se vestir durante uma cena do filme, faz parte do diagnóstico, sendo que muitos desaprendem atividades rotineiras, como tomar banho, se alimentar ou utilizar o banheiro.
Há também momentos de lucidez temporária, compostos por lembranças repentinas e passageiras, como a morte de sua filha Lucy, simbolizado pelo passagem de Anthony no hospital, vendo sua filha acamada, e que é rapidamente esquecida, apesar de antes ter confundido sua cuidadora com Lucy.
A demência do personagem mostra então sentimentos de luta e revolta, ambivalentes e voláteis, tanto que situações traumáticas foram esquecidas, como a morte de sua filha. A demência é uma doença degenerativa e progressiva, portanto quanto mais tarde se inicia o tratamento maior a quantidade de funções e cognições podem ser perdidas, muitas vezes de forma definitiva.
Um erro comum, inclusive presente no filme, é a inserção de um cuidador quando a doença já está instalada e causou danos cognitivos severos. O ideal é que o cuidador acompanhe o paciente desde os primeiros sinais da doença, assim há mais receptividade, porque há mais chance de lembrar-se dela, o vínculo terapêutico tem mais tempo para se fortalecer e, possivelmente se precoce, pode gerar prevenção ou retardo das perdas cognitivas.
Reforço que não foi especificado o diagnóstico mas, caso seja Alzheimer, devemos entender que há dois grupos de pessoas com a doença. O primeiro é das pessoas que apresentam primeiros sinais da doença entre 50 e 60 anos e o segundo é de pessoas com primeiros sintomas entre 60 e 70 anos. No segundo caso a evolução da doença é mais lenta. Em linhas gerais, a Alzheimer se desenvolve pela liberação em excesso da proteína beta-amiloide pelas células do cérebro, o que mata neurônios, produzindo buracos na massa encefálica e fazendo perda cognitiva. Os primeiros danos são no córtex entorrinal e, depois, no hipocampo, área do cérebro responsável pelas memórias.
Existe variabilidade genética para desenvolvimento da doença, contudo, existem outras variáveis ambientais, hábitos de vida e de alimentação que influenciam grandemente no desenvolvimento da doença.
A Alzheimer pode ser compreendida em seis estágios. O primeiro estágio pode durar vários anos e passar despercebido, porque costuma ser assintomático. O segundo estágio amplia o tamanhos dos buracos no cérebro, atingindo o hipocampo, e consequentemente as memórias, costuma durar um a três anos. Os estágios 3 e 4 são marcados por perda muito significativa de massa encefálica, durando de dois a cinco anos. No estágio 5 os danos são tão grandes que o cérebro perde sua forma, apresentando muitas ilhas e espaços vazios, já sendo um estágio grave, que dura dois a três anos. O último estágio marca a perda completa de cognição. A pessoa já não reconhece a si mesma nem familiares, desaprende funções simples, perde controle dos músculos e consciência.
Outras demências possíveis são a Demência Alcóolica, que pode se desenvolver devido à um longo período de ingestão de álcool, caracterizado pela confabulação e invenção de histórias; a Doença de Pick que, diferente do Alzheimer, não gera perda de massa encefálica, mas sim vários pontos inchados no cérebro, sem irrigação sanguínea e a Doença de Creutzfeld-Jakob, muito semelhante à Alzheimer, contudo muito mais agressiva e rápida, demorando poucos meses para chegar ao estágio final. Por fim, Parkinson e AIDS também podem desenvolver quadros demenciais.
Uma das maiores dificuldade para quem tem algum tipo de demência é evocar ou formar memórias, principalmente as memórias de longo prazo, mas nem sempre as de curto prazo. Ou seja, uma pessoa com a doença pode ter dificuldade para se lembrar de nomes e rostos de amigos e familiares, mas pode conseguir ir e voltar do mercado sem esquecer de comprar nada. Além disso, algo que aparece no filme, é a dificuldade de recordar-se dos filhos e conhecimentos básicos sobre a própria profissão, ou mesmo tarefas comuns do dia a dia, como utilizar talheres ou o banheiro.
Quanto à prevenção devemos considerar dois fatores, primeiro a variabilidade genética, ou seja, se há histórico familiar da doença, e os hábitos de vida. A melhor forma de prevenir, ou diminuir a probabilidade do desenvolvimento da doença é exercitar a neuroplasticidade. De forma prática, é exercitar constantemente o cérebro, aprendendo coisas novas, solucionando problemas, lendo bastante, aprendendo novas línguas e novos caminhos constantemente. Em outras palavras, botar-se à prova cognitivamente.
Sobretudo, o mais indicado é a leitura porque ela exercita muitas funções cerebrais, desde a compreensão dos símbolos e fonemas do idioma pelos olhos, passando pela imaginação do contexto e conteúdo, até a elaboração do enredo completo mentalmente, evocando sentimentos e pensamentos complexos, que trazem à tona também memórias individuais. Em suma, ler significa praticar a memória visual, verbal e imagética. Outras sugestões, como jogos, quebra-cabeças e palavras cruzadas também exercitam o cérebro, contudo não englobam tantas funções cerebrais quanto a leitura.
Inversão de Papéis
O drama de Anthony e Anne marca uma inversão de papéis importante que toda família com um idoso com doença neurológica poderá passar. Se a paternidade dele foi bondosa, gentil, acolhedora e compreensiva durante a infância de Anne é mais comum que possa haver uma retribuição autêntica pelo carinho e retribuição do amor que recebeu. Contudo nem todas as famílias possuem esse nível de proximidade afetiva para que seja possível ocorrer essa troca de papéis entre o que cuida e o que é cuidado. Podendo então resultar em um abandono afetivo, infelizmente ainda muito comum. Entretanto, como se pode perceber durante a cronologia do filme, parece que Anne tentou durante bastante tempo conviver com o pai mas, como a doença é progressiva e degenerativa, ficou cada vez mais difícil manter um ambiente de apoio médico e psicológico para ele.
Anne abre mão de muitas oportunidades em sua vida para cuidar de seu pai. Desde os pequenos momentos de tempo livre após o trabalho até as viagens internacionais com o marido, todas barradas pela sua necessidades de agir reciprocamente frente a, aparente, muito boa paternidade exercida por Anthony décadas antes. Paul também se apresenta muito incompreensivo da situação, agindo com desdém com a dor de sua esposa e acreditando que ela deveria seguir em frente, inclusive se inimizando com Anthony, questionando-o quanto tempo pretende “continuar arruinando a vida da filha”.
As lembranças que Anthony tem de Lucy também são ponto importante porque, como são comuns lapsos de memória, é possível que haja recordação da morte da filha, trazendo tristeza momentânea para Anthony, que logo esquecerá, e mais duradoura para Anne, que além de lidar novamente com a perda da irmã, terá de se explicar para o pai porque está chorando quando ele questionar após a perda de lucidez novamente.
Um marco importante está na segunda metade do filme, enquanto Anthony e Anne estão tomando café da manhã e Laura chega, se apresentando como sua nova cuidadora. Ele não percebeu, mas está agora na casa de repouso. A cena do jantar contem memórias que começam a se confundir, não fica claro o que aconteceu, se Anthony ouviu a conversa sobre ele ir para uma casa de repouso e ignorou, sentando na mesa, ou se ofendeu-se e foi para seu quarto.
A simbologia da paternidade
Em um senso comum, o pai é um grande protetor. Isso é ainda mais reforçado em uma sociedade patriarcal. Desta forma, Anthony deveria simbolizar uma imagem confiável e inabalável de apoio para Anne. Contudo, incapaz de sustentar suas próprias memórias e funções, cabe à filha a quebra da imagem de proteção e alento paterno, o que acontece a duras penas. Anne é muito resiliente na sua luta contra a realidade da doença de seu pai e, sobretudo, o luto de que está perdendo sua proteção de forma lenta, progressiva e contínua. Anne deve então lidar com uma sequência de desamparos e perdas. Primeiro a mãe, que é citada apenas uma vez no filme, de forma rude, agressiva e aversiva. Depois a irmã, tragicamente em um acidente. Por fim seu pai, presente em corpo, mas ausente em personalidade, função e proteção, deteriorando-se rapidamente com o passar do tempo.
O filme é finalizado dentro da casa de repouso, quando, ao conversar conscientemente com a enfermeira em um repentino acesso de lucidez, diz que sente como “se estivesse perdendo todas as suas folhas”. Podemos compreender essa frase, assim como o enquadramento final nas árvores e folhas janela afora, que as folhas simbolizam os ciclos constantes de perda e reconstrução. Desta forma, Anthony fala não saber mais quem é, não reconhecer mais seu próprio corpo. Em um avanço acentuado da doença, ele também diz que quer sua mãe, em uma lembrança de infância, característica das demências, na qual há uma volta à infantilidade e fragilidade emocional.
Sobretudo, o quadro demencial de Anthony já não possui tratamento ou possibilidade de reversão. Como é apresentado no filme a única possibilidade é o cuidado paliativo, ou seja, a atenção constante para diminuir o sofrimento individual e familiar.