A palavra Misofonia vem do grego, em sua etimologia “Miso” significa ódio ou horror e “Fonia” se refere ao som. Ou seja, Misofonia, também conhecida como Síndrome de Sensibilidade Sonora Seletiva, a qual ganhou nome usual em 2001, por Jastreboff, é uma condição que traz respostas emocionais desadaptadas frente os sons, normalmente raiva ou ódio e que são incompatíveis com a situação.
Todos nós podemos ter incômodo com sons específicos, mas o que se diferencia no caso da Misofonia é que os sons são realmente insuportáveis e podem ocasionar respostas emocionais fortes. Sons como uma pessoa mastigando, um lápis áspero riscando uma folha, um mouse clicando, ou qualquer outro som repetitivo já te fez sentir muito desconforto e até raiva? Se você tem alguma dessas respostas emocionais é possível que você tenha Misofonia.
Muitas pessoas sofrem emocionalmente e fisiologicamente com esses sons, contudo, infelizmente, a doença é pouco conhecida e estudada. Tanto que ainda não há registro da condição no DSM-V (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição) ou no CID-10 (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10.ª edição).
Segundo Jastreboff and Hazell (2004), a Misofonia pode estar associada a uma hiperconexão entre o sistema auditivo e o sistema límbico, área cerebral responsável pelas emoções, o que sugere e justifica a resposta emocional.
Diagnóstico
Atualmente, em 2020, não há uma padronização ou testagem objetiva para o diagnóstico da Misofonia. Para tanto, utilizamos um exame subjetivo, pelo discurso do paciente que sofre com os sintomas. As respostas físicas, fisiológicas, comportamentais e emocionais mais comuns ao entrar em contato com os sons desagradáveis são:
- Agitação
- Dificuldade de concentração e manutenção de foco
- Insônia ou dificuldade para dormir devido aos sons
- Fuga do local
- Isolamento social, para evitar contato com pessoas que façam barulhos desagradáveis
- Evitar locais públicos, como cinemas, restaurantes ou eventos sociais
- Rompantes de raiva com pequenos barulhos repetitivos
- Demandar com agressividade que alguém pare com aquele som
Além disso, pessoas com a condição podem enfrentar conflitos sociais, conjugais e familiares decorrentes da aversão sonora. Para os parentes é algo difícil de compreender, comumente taxando a pessoa com algum adjetivo. Entretanto, para o Misofônico se trata de um sofrimento real e é preferível se afastar dos familiares, cônjuge e colega de trabalho do que ter que lidar com os sons.
Existe também a possibilidade de respostas fisiológicas semelhantes aos sintomas de Transtorno de Ansiedade Generalizada, como taquicardia, arritmia, dores de cabeça, desconforto abdominal, dor óssea e facial, dentre outros. Isso acontece porque quando a pessoa com a condição entra em contato com os sons incômodos, ela tem uma respostas fisiológica clássica de perigo, clinicamente conhecida como “Luta ou Fuga” (Flight-or-Fight), ou seja, lidar com os sons é tão desagradável quanto estar em uma situação de real adversidade.
Além disso, a Misofonia pode gerar uma comorbidade relacionada ao TOC, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, com respostas físicas ritualizadas incompatíveis com o incômodo e que não remetem os sintomas nem mesmo geram relaxamento. Curiosamente, não se percebe o Déficit de Atenção como comorbidade, a menos que seja prévio aos primeiros sintomas da Misofonia.
Situações desencadeadoras
Sons específicos, normalmente repetitivos, costumam ser os principais incômodos para pessoas com misofonia. É importante ressaltar que os sons produzidos pelos próprios indivíduos não são incômodos, somente quando são externos.
Os sons mais desagradáveis estão relacionados aos atos de beber, mastigar, beijar, escovar os dentes, roncos, respiração anasalada, estalar os dedos, sussurrar, teclar, clicar mouse, frequência sonora repetitiva ou contínua, dedos roçando por páginas, tique-taque de relógio, animais bebendo ou comendo, cortar unhas e etc.
Estudo de Caso (2013)
Um estudo foi conduzido em 2013 com onze pessoas com Misofonia, quatro homens e sete mulheres, entre 19 e 65 anos, com média de 35 anos. Dentre os participantes forma levantados os seguintes dados:
Início dos sintomas:
Três (27%) perceberam os primeiros sintomas entre oito e dez anos
Três (27%) percebem os sintomas desde sempre
Três (27%) perceberam os sintomas na infância
Um (9%) percebeu os sintomas com 17 anos
Um (9%) percebeu os sintomas na Pré-adolescência
Piores desencadeadores:
Comer, mastigar, triturar (11)
Beijar (2)
Clicar canetas (2)
Tique-taque de relógio (2)
Existem casos na família?
Seis (55%) disseram ter histórico familiar
Três (27%) desconhecem
Dois (18%) não souberam responder
Estratégias para lidar com os sintomas:
Evitação ou sair do local ou situação (7)
Solicitar que o som pare ou reclamar (6)
Usar fones para ouvir música (6)
Focar nos próprios sons (5)
Auto-distração (5)
Pedir que os outros parem (4)
Diálogo interno positivo (1)
Efeito do álcool e cafeína:
Álcool ameniza os sintomas (7)
Cafeína piora os sintomas (4)
Os sintomas não são afetados pela cafeína (2)
Não usam cafeína (2)
Não usam álcool (2)
Sintomas não afetados pelo álcool (1)
Sem resposta (1)
Sintomas físicos:
Pressão no peito, braços, cabeça ou corpo todo (5)
Tensão muscular (5)
Aumento de temperatura, pressão sanguínea ou batimento cardíaco (2)
Dor físico em geral (1)
Dificuldade em respirar (1)
Suor nas mãos (1)
O estudo completo está disponível nas Referências, em inglês.
Estudo de Caso (2017)
Outro estudo, realizado com 20 misofônicos e 22 pessoas não-misofônicas para controle, foram apresentados à três tipos de sons. Estes foram divididos nas categorias:
– Sons desencadeadores (que evocam a reação misofônica nos indivíduos com Misofonia, como mastigação e respiração)
– Sons desagradáveis (percebidos como desagradáveis pelos dois grupos mas que não evocam desconforto misofônico, como gritos ou choro de bebê)
– Sons neutros (como chuva)
Após, todos foram questionados:
1. Quão desconfortável foi aquele som (ambos grupos)
2.1. Quão eficiente o som foi para desencadear a Misofonia (somente no grupo de Misofônicos)
2.2. Quão eficiente o som foi para desencadear uma reação antisocial (somente no grupo de controle)
Foram adquiridas respostas comportamentais, físicas e fisiológicas, por meio de Imagem por Ressonância Magnética Funcional. O funcionamento cerebral foi mapeado por vários parâmetros, para mensurar mielinização e níveis de água e ferro.
Em resumo, o estudo chegou à conclusão de que sons desencadeadores causam hiperativação do Lobo da Ínsula (Anterior Insular Cortex), uma área cerebral interna responsável pelas emoções, coberta pelos outro lobos cerebrais; também se percebeu uma conectividade funcional anormal com os lobos frontal medial, parietal medial e temporal; mielinização anormal no córtex pré-frontal medial (responsável por pensamento complexo, funções executivas, cognição e modulação de comportamento social) o que significa uma conexão funcional anormal com o Lobo da Ínsula e por fim uma significante resposta neural mediada pelas emoções e ativação fisiológica acompanhadas pelas experiências misofônicas.
Entretanto, com toda a informação agregada nesse estudo, não foi possível afirmar se a Misofonia é a causa ou a consequência de uma autopercepção corporal atípica.
O estudo completo está disponível nas Referências, em inglês.
Tratamentos
Até a data de publicação deste, não há cura para a condição. Entretanto existem tratamentos eficientes para aprender a lidar ou tolerar os sons, evitando as respostas emocionais e melhorando o convívio social:
Terapia Cognitivo-Comportamental
Como a TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental) tem seu foco na remissão de sintomas e controle de respostas emocionais de forma objetiva, pode ser uma ótima forma de tratamento e desenvolvimento de resiliência. Juntos, terapeuta e paciente podem favorecer técnicas e estratégias para lidar melhor com os sintomas. É importante que haja uma avaliação da história e do histórico do paciente, para verificar traumas e situações desagradáveis vividas.
Mindfulness
Mindfulness é uma prática de relaxamento e meditação com comprovação científica de eficiência, priorizando a atenção plena. Desta forma ela pode auxiliar muito no desenvolvimento de estratégias de foco, concentração e relaxamento muscular e sensitivo, assim gerando remissão de sintomas. Como se trata de uma técnica comprovada e autorizada pela Psicologia, deve ser realizada com um profissional certificado.
Auto-distração
Após tratamento é possível que o paciente desenvolva suas próprias técnicas e estratégias de controle emocional, físico e consiga se distrair dos sons, dando menos atenção a eles. Contudo, esse é um benefício que exige grande desenvolvimento pessoal e esforço.
Proteção Auditiva
Aparelhos auditivos, como abafadores e fones de ouvido, são úteis para diminuir a percepção sonora do ambiente, contudo não tratam os sintomas, não auxiliam a longo prazo e não trazem estratégias cognitivas para lidar com o sintoma. Podemos entender que os aparelhos sonoros ajudam sim, mas devem ser utilizados em parceria com outros tratamentos.
Referências:
- Jastreboff P. J., Jastreboff M. M. (2003). Tinnitus retraining therapy for patients with tinnitus and decreased sound tolerance. Otolaryngol. Clin. North Am. 26, 321–336 10.1016/S0030-6665(02)00172-X
- Jastreboff P. J., Hazell J. (2004). Tinnitus Retraining Therapy: Implementing the Neurophysiological Model. New York, NY: Cambridge University Press; 10.1017/CBO9780511544989
- Edelstein, M., Brang, D., Rouw, R., & Ramachandran, V. S. (2013). Misophonia: physiological investigations and case descriptions. Frontiers in human neuroscience, 7, 296. https://doi.org/10.3389/fnhum.2013.00296
- Sukhbinder Kumar; Olana Tansley-Hancock; William Sedley; Joel S. Winston; Martina F. Callaghan; Micah Allen; Thomas E. Cope; Phillip E. Gander; Doris-Eva Bamiou; Timothy D. Griffiths. The Brain Basis for Misophonia. 2017.
- Misofonia: características clínicas e relato de caso – Carlos Eduardo Leal Vidal, Ligia Melo Vidal e Maria Júlia de Alvarenga Lage
- Cientistas descobrem por que alguns ‘odeiam’ o som de pessoas mastigando – BBC Brasil