O filme finlandês, chamado “Dogs Don’t Wear Pants”, com tradução literal para “Cachorros não usam calças”, foi lançado em 2019, está disponível exclusivamente no canal de streaming MUBI e pode ser assistido clicando aqui. Essa resenha e análise do filme contêm spoilers, além de falar sobre depressão, luto e suicídio.
Trailer:
“Cachorros não usam calças” se inicia com Juha, um médico que está pescando no lago ao lado de casa, trazendo o peixe para mostrar à sua filha no trapiche. Logo em seguida encontrando a esposa na entrada da casa. Ela estava lendo um livro, quando vem abraçar a filha e encontrar o marido. Todos almoçam juntos e Juha se deita para dormir após o almoço, acordando com o choro da filha que se desespera aguardando a mãe que mergulhou no lago e não voltou.
O filme dá a entender que pode ter havido aqui um suicídio da esposa, mas uma rápida cena enquanto Juha pula no rio para salvar sua esposa mostra que ela havia se prendido às redes que o marido usara mais cedo para pescar. Não suficiente, no fundo do lago, após vários momentos tentando salva-la, ele próprio sucumbe e se afoga no fundo do lago. O desmaio traz à tona uma alucinação ou sonho, no qual ambos se encontram submersos em um abraço quase que divino, uma entrega completa da sua vida para o além. Ele é salvo por alguém que não é mostrado. Sua esposa morre e, há um lapso de cinco anos no futuro. Juha já mora em outro lugar com a filha, agora adolescente.
Depressão
Seu rosto mostra um vazio, uma apatia, anedonia e tristeza profunda. Yuha se masturba diariamente com as roupas e perfumes da falecida esposa, ainda hoje, enfrentando o sentimento da perda. Andrew Solomon, um dos mais importantes autores sobre depressão, escritor do “Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão“, diferencia muito bem o Luto da Depressão.
“Há três coisas que as pessoas costumam confundir: depressão, luto e tristeza. O luto é explicitamente reativo. Se perdemos alguém e nos sentimos muito infelizes, e depois, seis meses mais tarde, ainda estamos tristes, mas começamos a reagir um pouco melhor, provavelmente é luto. […] Se sofremos uma perda catastrófica e nos sentimos mal, e seis meses depois não conseguimos reagir nada, provavelmente é uma depressão ocasionada pelas circunstâncias catastróficas. […] As pessoas pensam que a depressão é apenas sentir-se triste. É muito, muito mais do que tristeza e muito mais do que luto. […] Numa depressão, não pensamos que colocamos um véu cinzento e estamos a ver o mundo através da neblina de um mau humor. Achamos que retiraram o véu, o véu da felicidade, e que agora é que estamos vendo verdadeiramente. É mais fácil ajudar esquizofrénicos que sentem que há algo estranho dentro deles que precisa ser exorcizado. Mas é difícil com deprimidos, porque acreditamos que estamos a ver a verdade.”
Andrew Solomon
Juha carrega uma culpa pela morte de sua esposa, algo que poderia, em sua cabeça, ter sido evitado. A culpa é um sentimento que costuma ser direcionador da depressão, porque se orienta pela responsabilidade do que não foi feito, da atitude impensada, da pessoa não salva, daquele cochilo pós-almoço que poderia ter sido evitado. Juha assume para si uma responsabilidade por uma fatalidade, uma causalidade que, mesmo com todos os fatores intocados e nenhuma atitude diferente, poderia resultar em um fim avesso.
Ele fica preso em um ciclo de aproximação e afastamento, entre erotismo, saudade, culpa e tristeza, se relacionando diariamente com fatores que recordam sentimentos da perda e da relação afetivo-erótica com sua esposa. Um dos rituais de reencontro e elaboração do luto utilizados por Juha é se masturbar com o perfume e as roupas íntimas da esposa no rosto, quase como uma asfixia, uma experiência que flerta com a quase-morte de Juha ao tentar salvar a esposa e também se assemelha com uma ideação suicida. Ele não se incomoda, e inclusive está aqui um dos favorecedores do diagnóstico de depressão, sofrer fisicamente para compensar os sentimentos que agora sente ser responsável por criar.
Dentre os principais sintomas que podem diagnosticar um quadro depressivo, estão alterações de humor, diminuição de interesse e prazer na vida e cotidiano, dificuldades de sono, fadiga e falta de energia, sentimento de culpa e inutilidade e pensamentos suicidas ou de autoflagelação, dentre outros. Por tanto sentimento de perda e incapacidade de lidar com o que aconteceu com sua família, Juha encontra no sofrimento físico uma via de elaboração da dor psicológica.
Luto
O Luto foi estudado e compreendido em profundidade por Elizabeth Kübler-Ross em seu livro lançado em 1981, de título “Sobre a Morte e o Morrer”. No livro ela divide o Luto em cinco etapas, sendo que podemos enfrentá-lo durante vários anos, iniciando após uma perda de emprego, ente querido, mudança muito grande no meio de vida e outros acontecimentos importantes. Os estágios são Negação, Raiva, Barganha, Depressão e Aceitação, podendo seguir ou não essa ordem, portanto, cada pessoa enfrenta o luto de forma singular. Importante ressaltar que o processo de luto costuma durar uma média de dois anos e que Juha já estava enfrentando-o há cinco anos. Esse fator é importante porque nos ajuda a compreender que o sentimento já se cristalizou, já se fortaleceu tanto que seria necessário muito trabalho terapêutico.
Outra questão importante é que a perda foi repentina. Diferente de morte por velhice ou doença, a morte inesperada traz um impacto pungente. Não houve preparação ou aviso. Sua esposa estava viva naquele dia pela manhã e à tarde já não estava mais. Perdas repentinas como essa trazem um sentimento de irrealidade, como se fosse um sonho, como se fosse possível acordar no dia seguinte com tudo como sempre foi. O lapso de cinco anos entre a morte da esposa e a continuação do filme deixa em aberto uma série de acontecimentos, mas também deixa a certeza de que não houve superação da perda.
“E a primeira fase desse processo, tenha a perda sido antecipada ou não, é de “choque, apatia e uma sensação de descrença”, “Isso não pode estar acontecendo!” “Não, não é possível”. Talvez choremos e nos lamentemos em voz alta; talvez fiquemos sentados em silêncio; talvez períodos de dor se alternem com períodos de atônita incompreensão. O choque pode ser menor quando se vive muito tempo com a iminência da morte da pessoa amada. O choque de que alguém que amamos não existe mais no tempo e no espaço não é ainda uma realidade, está além do que podemos aceitar”
Perdas Necessárias (p.244) por Judith Viorst.
Regras do BDSM
Apesar de “Cachorros não usam calças” falar muito mais sobre questões psicológicas, faz-se importante entender quais as regras inerentes à prática BDSM. Toda atividade BDSM deve ser Sã, Consensual e Segura, ou seja, sempre com autorização, de forma segura, com palavras de autorização e parada que devem ser respeitadas e, o principal considerando o personagem, estrito para pessoas sem transtornos ou ideações suicidas. Além disso, o BDSM não se relaciona necessariamente com a relação sexual e sim com a dominação e submissão, quem está em cima e em baixo, em uma compreensão hierárquica que não envolve ato sexual, mas a dor e o prazer decorrente. Como ato consensual, não cabe dentro do BDSM qualquer atividade abusiva ou não autorizada por alguma das partes, todos que participam da atividade o fazem por livre e espontânea vontade.
Cachorros não usam calças
Essa expressão, literal e metafórica, traz um misto de fetiche e submissão que faz um pano de fundo para a elaboração do sofrimento de Juha, mas que é secundário na história como um todo, afinal “Cachorros não usam calças” não é sobre BDSM (sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), e sim sobre perda, luto, morte e depressão.
Tudo começa quando sua filha, Elli, decide colocar um piercing na língua. Juha leva a filha para um estúdio e, para não ver a perfuração, vai à outra sala onde encontra um homem preso à parede e, ao tentar toca-lo, é atacado por Mona, uma Dominatrix, que o derruba e asfixia pela primeira vez. Ele perde as forças, desmaia e encontra novamente a esposa no sonho. Aqui, Juha estabelece o flerte com a linha tênue entre vida e morte, numa tentativa de alcançar o afeto cada vez mais exigente, cada vez mais longe, necessitando de mais força e mais tempo no sonho e menos na realidade. O momento se finaliza somente com a chegada de Elli, momento que Mona foge, deixando uma marca involuntária para que Juha se lembre dela ou talvez uma última punição pelo seu erro, uma pisada no polegar, fazendo ele acordar e, posteriormente, sua unha apodrecer.
O termo “cachorros não usam calças” é falado apenas uma vez no filme, justamente pela sua força, estabelecendo regra inquestionável, ou seja, enquanto dominado por Mona, o personagem principal escolhe abdicar de sua personalidade para encenar uma situação de submissão que, até o momento, não parecia nada além de uma injeção de adrenalina, contudo, aos poucos, simbolizada pela escada para entrar e sair da relação entre o BDSM e a elaboração de seu sofrimento, Juha se mostra mais interessado no sofrimento físico para tentar alcançar o reencontro com a esposa e o equilíbrio com o, escondido, sofrimento psíquico. Mona se equipara a Juha, curiosamente, por terem profissões e interesses que reforçam o estilo de vida relacionado com a dor. Juha lida diariamente com cirurgias nas quais opera pacientes e Mona trabalha como fisioterapeuta, tratando a dor de seus pacientes.
O segundo encontro de Juha e Mona é marcado pela inversão da dor física pelo afeto, um abraço que ele inicia e continua em uma tentativa de beijo que é rechaçado por Mona, mas meio segundo depois devolvido, agora com ela dominando, ela decidindo beijar, e não sendo beijada. Com isso Juha quebra uma das regras do BDSM, que é o consenso.
Isso se mantém até o momento em que Mona começa a asfixiar Juha. Esse ato rememora a perda de sua esposa, não necessariamente o momento de sua morte, mas o momento do encontro entre eles, no fundo do mar.
Barganha
O terceiro estágio da elaboração do luto se dá pela barganha, ou Negociação, como também é chamada. Nesta, Juha procura se punir em três aspectos. Primeiro quando é asfixiado por Mona e, inconsciente, se imagina no fundo do lago, sendo salvo pela esposa, invertendo então a situação, como se dissesse: “era eu quem deveria morrer naquele lago”. O segundo aspecto se dá pela própria prática BDSM, na qual ele busca uma redenção da sua culpa, pagando penitência no corpo por tudo que havia gerado para si mesmo e para a morte da esposa. O terceiro aspecto se dá pela busca da reunião entre marido e esposa no pós-vida, ignorando a filha e pessoas que se importam com ele, para Juha não há preço alto a ser pago que não compense reencontrar a esposa. Juha deixa-se estrangular até a morte e quebra o acordo com Mona ao não soltar a bola de vidro que segurava na mão, um símbolo para uma “palavra de segurança”. Não havia preço alto demais a ser pago para reencontrar-se com a esposa.
Resolução
Após a quase-morte de Juha, “Cachorros não usam calças” dá uma virada, uma inversão de papéis. Juha, que antes queria apenas reencontrar a esposa mesmo que lhe custasse a vida, agora também quer Mona, mesmo que isso lhe custe ocupar o local de submisso e lhe cause muita dor. Isso fica claro quando começa a persegui-la para que lhe asfixie novamente. Qualquer pessoa poderia ocupar aquele espaço, mas há entre eles uma relação de confiança que supera a vergonha do ato ou o risco. Mona então aceita, mas desde que seja nos seus termos, da sua forma. Sua forma de prazer, nesse momento, seria arrancar-lhe um dentem algo que, claramente, Juha não gosta, mas considera um pequeno valor a pagar.
Ao final do filme, eles se reencontram na mesma balada que Mona costumava ir, mas Juha não vai para encontrar Mona, ele vai para viver e descobrir sua própria sexualidade e estilo de vida, tentando conhecer mais do BDSM. Ao ver que ela também estava lá, ele começa a dançar, com um sorriso no rosto.
“Cachorros não usam calças” ilustra uma elaboração de sentimentos não compreendidos pelo personagem principal e que poderiam ter sido trabalhados, elaborados, esclarecidos, com um profissional qualificado, mas que foram estendidos e cristalizados por tanto tempo que se tornaram não apenas sentimentos e sensações momentâneas, mas também parte da personalidade de Juha. Mona entra como dominadora, mas também assume, involuntariamente, um papel de terapeuta, não pelos seus atos, mas por facilitar um último encontro de Juha e sua esposa.
Há também aspectos relacionados ao fator de que Juha claramente não lidava ou tentava compreender seus sentimentos. Entrar no mundo BDSM foi um tiro no escuro, poderia ter sido algo muito traumático, inclusive. Mas isso não é exclusivo do personagem principal. Grande parte dos homens não foram ensinados a compreender e saber traduzir seus sentimentos, esse trabalho de olhar para si mesmo então se faz ainda mais importante.